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Análise Fílmica de Meshes of the Afternoon (1943)

Maya Deren (1917-1961) foi uma cineasta norte-americana da vanguarda cinematográfica e o primeiro filme a trazer reconhecimento ao seu trabalho foi Meshes of the Afternoon (1943). Assim como todas as artes, os trabalhos artísticos propostos por homens eram muito mais conhecidos no cinema. Situação que vem mudando ao longo do último século em que a mulher tem conquistado seu espaço em diversas áreas de trabalho, inclusive nas artes. Para criar algo novo no cinema, o experimental feito por mulheres precisa se libertar dos padrões estabelecidos, das criações preexistentes que demonstram uma perspectiva falocêntrica. Maya Deren, portanto, é uma cineasta vanguardista que lutou para conquistar seu espaço e dar visibilidade dentro de uma arte dominada por homens. Meshes foi não apenas seu primeiro filme,mas o que a fez entrar neste cenário experimental como cineasta, mais especificamente da vanguarda norte-americana da década de 40 e 50.

O filme Meshes of the Afternoon(1943), traduzido para Tramas da Tarde,foi gravado em película 16mm e em preto e branco devido às condições de produção da época e tem 14 minutos de duração. Inicialmente, o curta não contava com qualquer tipo de som, ou diálogo, ou mesmo diálogos escritos, passando a ser sonorizado apenas em 1952 por Teiji Ito. Maya Deren(1917-1961) é a roteirista do curta-metragem e diretora em parceria com Alexander Hammid, ambos os diretores interpretam personagens na obra.

Depois de quase 10 anos do lançamento do filme, Teiji Ito compôs a música que por vezes se confunde com uma espécie de sonorização marcando momentos, movimentos, ou servindo como barulho (ruído) não realístico a objetos, como no início do filme quando a chave cai nas escadas e a música identificada com o barulho do objeto ao encostar o chão. Há períodos em que a trilha sonora se confunde com ruídos com intuitos de provocar impressões. Ainda em relação à música, é possível passar por sensações de angústia ou suspense, previamente planejadas.O fundo musical atua como antecipador de algo. A antecipação acontece quando o som não dialoga diretamente com o que é viso na tela, mas já prepara o público para o futuro da história, no caso de Meshes isto acontece (também no início), quando a personagem vê ao longe uma “sombra” andando a sua frente e a música já traz a agonia que virá quando este ser se revelar.

O cinema experimental realizado por mulheres é de certa forma bastante parecido com os demais experimentais na busca por novas técnicas, tentativas e desconstruções. No caso de Meshes of the Afternoon, a atmosfera que envolve o filme é a do sonho, em que a protagonista dorme e durante o sonho a trama se desenvolve. Como nos sonhos tudo é possível, neste Deren utiliza efeitos como a câmera lenta; a duplicação ou no caso deste filme em particular a quadruplicação da personagem; ângulos e movimento de câmera fora dos padrões que são principalmente usados para reforçar o estado da mulher, que dão sensações de desequilíbrio ou flutuação. e enquadramentos pouco convencionais, por exemplo no inicio em que o enquadramento se concentra mais nos pés da personagem que nela, ou a pouca importância que se dá a beleza da atriz e diretora já que o fico está nos objetos e na historia do que na exploração da beleza feminina. Porém este filme ultrapassa os efeitos técnicos e a estética surrealista, é uma construção que busca contar a trama de uma mulher e suas angústias, desejos e até mesmo medos que se mostram através do espaço do subconsciente que é o sonho.

Ainda no cinema produzido por mulheres são apresentadas criações que desconstroem a ordem “normal” na qual o homem é o ser significante, o portador da palavra, ou seja, uma criação em que a mulher tem sempre um papel secundário (mesmo quando protagonista). No cinema feito por mulheres busca retratar o universo da mulher, o seu espaço, seus desafios. Meshes of the Afternoon faz parte desta modalidade de cinema, sua história por mais confusa que possa parecer tenta expressar a repressão que a mulher sofre, mesmo no seu ambiente mais familiar, a sua casa. Como uma mulher, ela pode ter tantas facetas, indicando que há uma diversidade de mulheres dentro de si mesma, exemplificada na personagem a qual é dividida e/ou multiplicada em muitas das cenas. Isso sugere que ela está sempre se debatendo e se recriando em seu processo de construção de ser mulher.

A análise a seguir será fundamentada em duas teorias que buscam interpretar a o conteúdo da linguagem simbólica contida nos principais elementos presentes no filme Meshes of the Afternoon: a psicología analítica de Carl Gustav Jung e na obra antropológica de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Por símbolos entende-se a associação do objeto e a relação com seu sentido latente, quando o objeto que nos é comum escapa do seu significado convencional e óbvio. Desta forma o objeto se torna simbólico quando alude algo além do seu significado imediato. Por isso estas teorias ajudam a interpretar o filme, especialmente, por este se passar no ambiente do sonho no qual os elementos ganham um sentido profundo, para além da utilidade. Estes elementos simbólicos são fundamentais para a interpretação da obra subjetiva:Meshes. Subjetividade esta que leva o viés da análise a diversas suposições, formas de leitura possíveis sobre a trama, cuja única pessoa a ter autoridade de revelar os significados verdadeiros seria a própria Maya, o que segundo Jung, como um sonho deve ser interpretado individualmente pelo sonhador. Os sonhos na psicologia são interpretados como portais, entradas, preparações e ensaios para o próximo passo da consciência da mulher no seu processo de individuação. Fornece um espelho para ver o inconsciente profundo, o que está perdido e que necessita de reparação e equilíbrio. Embora se coloque inferências teóricas, compreende-se que a subjetividade da roteirista, bem como do sonhador, abre espaço para que cada espectador tenha uma impressão singular sobre o curta, já que seus conhecimentos, história de vida e percepções, são diferentes.

Quanto aos elementos simbólicos do filme se destacam alguns objetos que aparecem recorrentemente ao longo da obra. O primeiro elemento que aparece ao longo do filme, é a flor, que na análise da antropologia é um símbolo do princípio passivo,pode significar o feminino dentro do filme, o objeto delicado e frágil. A passividade está se encaixa na trama em que a mulher se vê presa, de certa forma, no ambiente “casa”, e também com a constante posição de passividade das mulheres ao lado dos homens, servindo como uma forma de crítica a ordem social fálica estabelecida. A flor é trazida para dentro da casa pela personagem de Deren, pelo ser misterioso e também pelo homem ao final a obra, insinuando que aquele é o ambiente da mulher, dentro de casa.

Em contraste do significado da flor, a faca, segundo a visão antropológica escolhida nesta pesquisa, remete ao princípio ativo por ter formato fálico, levando a interpretar ser o elemento que representa o masculino. Não se atendo a um objeto com conotação fálica, Deren escolheu dentre tantos objetos a faca para isso, objeto cortante que é associado também à ideia de morte. A faca em todos os momentos em que aparece já está dentro da casa, seu local de dominação ou submissão. Porém dentro da psicologia Junguiana a faca não é necessariamente ameaçadora, pelo contrário se mostra um objeto necessário para a mulher como instrumento visionário usado para cortar a obscuridade, representa o insight, a descoberta de novos caminhos, e esta leitura se faz possível quando a personagem usa da faca para quebrar uma barreira (que se mostra como espelho) e logo antes disto a faca brilha indicando um objeto que traz “luz”. Sob estas duas perspectivas se fazem leituras bastante distintas e ambas se encaixam na trama diferentemente. Ou seja, a luta com as forças dualísticas. Até mesmo a casa que é simbolicamente compreendida como abrigo, proteção, pode ter o significado de prisão e violência, já que neste ambiente a liberdade da mulher pode ser tolhida.

A chave é o segundo objeto a aparecer e também se repete inúmeras vezes durante a elaboração da trama, remetendo à interpretação da psicologia Junguiana a chave para as mulheres simboliza o acesso ao conhecimento ou ao mistério, como a personagem que destranca a porta de sua casa onde a trama misteriosa se desenvolve. A chave aparece também no filme dentro da boca da personagem que sugere um enigma a ser desvendado, uma situação não concluída em que palavras-chave são fundamentais para a resolução da situação. Na visão antropológica a chave literalmente é objeto que abre e fecha portas, e metaforicamente seu significado é relacionado à abertura e fechamento, no contexto do filme, dos ciclos. Tanto a porta da casa quanto a boca e os olhos - partes do corpo retratadas com closes - do ser humano são interpretadas como partes de um organismo, casa ou corpo, barreiras que se abrem e se fecham ao mundo interno e ao externo conforme as escolhas e necessidades, neste caso, da protagonista. Mais uma vez uma luta com os opostos que levam à permissão ou negação da mulher de se conhecer e de se firmar.

Detalhando a ordem de acontecimentos está a abertura da porta, que para a mulher, segundo a psicologia analítica pode significar uma barreira psíquica a qual a personagem a destranca com a chave, ao entrar no ambiente familiar, sob o olhar de uma câmera subjetiva da personagem, ela parece reconhecer o local. Porém, não apenas uma vez, essa abertura acontece dentro do sonho, ela abre a porta interior mais algumas vezes e em cada uma delas encontra objetos novos em locais diferentes, considerando que cada vez que ela transpassa a porta é uma parte diferente de si que entra e ela se relaciona de forma única com o ambiente e os símbolos dispostos no local e vai permitindo descobrir seu mundo pessoal interno. Na antropologia o significado da porta é bastante semelhante quanto à passagem entre o conhecido e desconhecido, o convite a cruzar para o interior indica a busca do conhecimento, o que para a personagem significa o conhecimento interior de si mesma.

Outro objeto presente durante o processo é o espelho, este aparece em alguns poucos momentos como quando a sombra revela sua face, esta inexistente, já que em muitas cenas é o próprio espelho. A sombra, é um dos símbolos mais importantes dentro psicologia de Jung, representa o mundo oculto, o lado negado da consciência e que precisa ser reconhecido. Chega a sombra até as mulheres por meio dos sonhos na intenção da reunião da psique. A sombra é livre, a força que segue as mulheres por algum motivo, geralmente com o que está perdido, reprimido. No filme, pode-se identificar a sombra como o outro lado da protagonista, aquele que ela não tem coragem de assumir. Aparece junto com o ser espelhado, talvez, com objetivo de reforçar que o oculto precisa ser refletido, trazido à tona, a sombra precisa ser conhecida, ou seja, a protagonista precisa se conhecer também naquilo que ela esconde. Mais uma luta dual, afinal, o feminino e o masculino com suas qualidades e imperfeições estão também dentro da mulher.

O espelho aparece por sua vez refletindo a figura masculina, a qual a personagem principal quebra com a faca (próprio objeto fálico), neste ato tem-se a sensação que o espelho é uma ilusão e não a reflexão perfeita. Pode com isto, ser um dos significados atribuídos, por que o que o espectador vê é a imagem do homem como se fosse o real, porém ele é apenas um reflexo. O espelho pode estar simbolizando a dualidade do real e do imaginário sobre a posição da mulher diante das normas sociais vigentes na cultura machista. O espelho reflete neste caso novamente dualidade, já que o espelho reflete o que se quer e o que não se quer ver. Negar isto é ilusão, é preciso cortar a ilusão. A quebra do espelho simbolicamente remete a ruptura com a situação em que ela se encontrava, momento de grande importância para a personagem na sua caminhada, de decisão.

Logo após está o oceano, lugar associado ao horizonte, à profundidade e à liberdade, que ela encontra depois de tomar uma atitude drástica contra a figura masculina, ou contra si própria. Momento em que a personagem se encontra obstinada a sair da indecisão em que se encontra, a abraçar o conhecimento e lutar pela sua liberdade. Entrando na questão da conclusão do filme quando o homem entra na casa e já não é mais um sonho e a encontra morta na poltrona onde dormia, esta morte pode ser interpretada como o suicídio e entendida como a morte do corpo ou pode ser mais uma simbologia dentro do filme. A concepção de morte tem como qualidade renovação, logo dentro desta história repleta de simbologias a personagem não precisa ter necessariamente morrido, ela pode ter precisado “morrer” figurativamente para renascer.

O filme é conhecido pelo roteiro em loop, em que as personagens insistem em fazer o mesmo caminho, desde a estrada, o subir as escadas, entrar na casa e reconhecê-la, subir ao quarto e voltar a se postar ao lado da original e observar o ciclo recomeçar. No entanto, a terceira face da mulher não chega ao final do ciclo, ela o quebra já ao entrar na casa e juntarem-se às outras ao redor da mesa, e encerra o ciclo com a tentativa de ferir a si mesma, o corpo de onde o sonho se origina. Junto às outras duas, a terceira “cópia” se revela ser a marcada (com a mão pintada), e sua chave se transforma em faca. Novamente o objeto de ameaça, a representação fálica intensificando a ideia de morte atribuída ao objeto, ou pela psicologia Junguiana interpretado como o momento em que ela usa do objeto para se remodelar (esculpir), que não deixa de ser a morte da mulher que entrou para dar lugar a nova mulher que passou pelo processo de autoconhecimento.

No curto caminho que a marcada percorre da sala de jantar, onde encontram-se as “cópias”, à sala de estar onde a original descansa, Deren o torna longo. O primeiro passo foi gravado em um ambiente totalmente diferente da casa, em uma praia com o oceano de paisagem levando o espectador a pensar no longo trajeto que se tornou aquele curto caminho, e a edição é fundamental para transmitir esta ideia que é possível no cinema e usada com sabedoria constrói uma relação entre as imagens parecida com o nosso psiquismo. O mar tem diversos significados, um deles é a indecisão além da liberdade do horizonte, que dentro da trama significaria o longo caminho que percorreu as suas dúvidas para chegar a uma decisão, sua luta interior. Enquanto o cenário alude a liberdade com o horizonte ela caminha na areia (terra) que faz referência a sustentação e manter-se na realidade. O próximo passo neste caminho de decisão ela sai do caminho em espaço natural da praia para um calçamento duro que a chama de volta à realidade. A montagem de um filme é essencial para o contar da história e familiarizar o público dentro da trama, em alguns casos como o de Meshes a edição consegue alcançar uma sintonia com linearidade diferente de narrativa por se passar dentro de um sonho (subconsciente).

Em alguns momentos os movimentos de câmera dão a sensação de desequilíbrio, como quando a personagem tenta subir a escada e a câmera balança como se estivesse dentro de um barco e o chão se movesse impedindo o progresso da personagem ao subir as escadas. E também nas escadas é utilizada a câmera lenta, quando dentro do sonho a primeira Maya as tenta subir. Com isso é perceptível que subir é um trabalho árduo para a personagem, a evolução é um trabalho difícil, e a câmera lenta poderia insinuar ainda o longo tempo que isto leva. A escadaria é o símbolo da progressão, no sentido para cima, simbolicamente quer dizer a ascensão em direção ao conhecimento, que para a personagem do filme se mostra uma tarefa penosa, mas que ela insiste em repetir. Assim como a porta que ela atravessa diversas vezes em busca da compreensão e conhecimento, este é o significado do filme, a busca da mulher pelo conhecimento, compreensão de si e da liberdade.

Maya Deren escreveu e dirigiu um filme curto, porém de uma complexidade pouco vista. Nele a mulher se encontra em conflitos internos ilustrados no formato de sonho, onde o subconsciente se aflora e os conflitos são ilustrados de formas indiretas e metafóricas por meio de diversos elementos simbólicos que contam a trama da personagem da tarde. Uma mulher que a todo momento se mostra estar em conflito com diferentes partes de si mesma, com a figura masculina, e com a sua condição de vida. Ela busca o autoconhecimento, unir a si mesma e aceitar-se, inclusive as partes que insiste em ignorar. O conflito com a figura masculina pode ser lida com a ameaça que a faca pode representar e com o ato contra o reflexo do homem no espelho, o elemento recriminador da liberdade. Desta forma a liberdade que a personagem busca é em relação ao homem, e de certa forma de si mesma que até então se encontrava na situação de passiva e apenas depois da reflexão interior é capaz de lutar pelo seu próprio horizonte.


Bibliografia

CHEVALIER, Jean &GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução: SILVA, Vera da Costa et al. 19ª ed. Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 2005.

ESTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos, histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução: BARCELLOS,Waldéa. Editora Rocco LTDA, Rio de Janeiro, 1994.

FADIMAN, James & FRAGER, Robert. Teorias da personalidade. Tradução: SAMPAIO, Camila Pedral&SAFDIé, Sybil. Editora Harbra, São Paulo,1986

NICHOLS, Bill. Maya Deren and the American Avant-Garde. University of California Press, California, 2001.


Texto de 2015

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